segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Prós e contras dos transgênicos na percepção pública e na avaliação de risco


Paulo Paes de Andrade
Departamento de Genética/ UFPE

Alguns questionamentos sobre as plantas transgênicas hoje no mercado brasileiro surgem sempre, de forma redundante. Muitos são voltados à questão do modelo agrícola brasileiro, outros envolvem o uso de herbicidas, outros ainda questionam os cientistas que não encontraram problemas com os transgênicos e alguns poucos estão centrados nos riscos diretos das plantas transgênicas à saúde e ao ambiente. Embora estes últimos questionamentos sejam os únicos que, de fato, me interessam integralmente, acabo me posicionando sobre os demais, nem sempre com a base técnica ideal. Isso pode me dar dor de cabeça no futuro, mas como sempre me consulto com os especialistas e leio o máximo que posso dentro do tempo que meu trabalho e demais atividades permitem, acho que não erro muito.
A postagem que se segue é baseada em vários questionamentos do Sr. Ruy Freire Filho (link), que gentilmente colocou suas opiniões no blog Tudo sobre plantas e as discutiu comigo. Creio que a ordenação e formalização textual destas respostas podem ser de alguma utilidade ao público interessado nos transgênicos e seu uso na agricultura.

1. Melhor seria se fôssemos um país agroecológico ou ao menos livre de transgênicos
Somos grandes exportadores de grãos. Se isso é bom ou mau, não sei, mas o país foi levado a isso por uma série de circunstâncias históricas, que envolvem o descaso com a educação, a concentração de terras, a aptidão agrícola, nossa vasta área e muitas outras coisas. Se quisermos competir no mercado internacional, tempos que seguir o que há de mais moderno na produção de grãos ou nossos preços não serão competitivos. Isso inclui a transgenia. Alguns argumentam que existe um mercado convencional grande (dos países que não compram transgênicos), mas este mercado é pequeno para o tamanho do nosso país. Outro modelo de agricultura (agroecológico, orgânico, etc.) pode fornecer suficiente grão para o consumo interno, mas duvido muitíssimo que possamos competir e exportar gerando a renda que hoje geramos.
Uma quantidade gigantesca de milho e soja é transformada na comida diária do brasileiro, diretamente (em geral através de produtos industrializados) ou indiretamente (através da pecuária). Grandes e médios agricultores também contribuem para a produção de outros itens da nossa mesa: arroz, batata, açúcar, laranja, café e por ai vai. Evidentemente o país possui também uma vasta área plantada por pequenos agricultores, agricultores familiares e cooperados, que produzem grande variedade de produtos agrícolas, em geral para o consumo in natura ou com pouco processamento. O Governo Federal apoia os dois tipos de agricultura e está certíssimo em fazer assim. Um país que quer garantir divisas com a agricultura e alimentar seu povo deve evitar polarizações tecnológicas e ideológicas e nosso país convive (nem sempre bem) com os modelos baseados em pequena agricultura e grandes produtores, facilitando o suprimento interno de alimentos e garantindo divisas. Também não devemos acreditar que os pequenos agricultores são os responsáveis majoritários pela mesa do brasileiro: não é assim – os pequenos, médios e grandes produtores, todos, garantem nossas refeições diárias com hortaliças e frutas, feijão, cebola, óleo, margarina, arroz, açúcar, café, sucos embalados e engarrafados, embutidos de todo tipo, biscoito, bolachas, cuscuz, canjica, macarrão, pão, leite, queijo, carne, vinhos, cerveja, cachaça e por aí vai, numa lista que inclui todos os agricultores deste país. É uma tremenda inverdade afirmar que 70 % do que comemos provém da pequena agricultura.

2. Compra de sementes e dependência tecnológica
 A compra de sementes a cada safra, no lugar do plantio de grãos, pode parecer ruim para o agricultor, mas não é assim: a cada ano novas variedades são lançadas, cada vez mais produtivas e adaptadas a cada nicho de terra de nosso país. Plantar grãos de uma safra na próxima não incorpora estes ganhos. Além disso, doenças e pragas podem facilmente ser propagadas quando se usa grãos como sementes e isso todo agricultor que planta muitos hectares de terra sabe muito bem. Daí a vantagem de comprar sementes. Mais uma vez, o cenário aqui é o de alta produtividade e o “lucro” com sementes melhoradas, mesmo que adquiridas de uma empresa multinacional, se espalha por toda a cadeia produtiva e para os consumidores. Isso é bem visível nos gráficos da Céleres (http://celeres.com.br/3o-levantamento-de-adocao-da-biotecnologia-agricola-no-brasil-safra-201415/) .
Por outro lado, o melhoramento é feito tanto pelas empresas privadas como pela EMBRAPA, e todas elas bebem da fonte do agricultor: há, sim, um diálogo contínuo entre o produtor e o melhorista, ao menos no Brasil. Cria-se, desta forma, uma certa interdependência entre os melhoristas brasileiros, os agricultores e as empresas multinacionais.
Ainda que o uso de sementes desenvolvidas por multinacionais seja muito difundido (e não apenas no agronegócio, é bom dizer), se os preços não forem vantajosos o agricultor escapa pela tangente, usando grãos como sementes e empregando sementes distribuídas pelo governo. A ninguém interessa um impasse comercial, onde o produtor de semente não consegue vender e o agricultor não consegue plantar.

3. Venda casada de sementes e insumos
A “venda casada” é um problema sério, mas o ubíquo glifosato (herbicida mais usado no Mundo, mesmo antes dos transgênicos) não é um caso típico: várias empresas produzem plantas tolerantes ao glifosato e muitas empresas produzem o glifosato, de forma que o conceito de “venda casada” não se aplica. O mesmo é válido para o 2,4-D, que é produzido por muita gente e para o qual muitas plantas GM de diferentes empresas estão sendo avaliadas pela CTNBio (sugiro uma leitura da última pauta da Comissão, que está sempre disponível no site da CTNBio). A venda casada ocorre desbragadamente em outros setores e os brasileiros raramente percebem...

4. Boatos e suspeitas sobre os OGMS
A questão do suicídio devido aos transgênicos pode ser descartada, seguramente (http://www.nature.com/news/case-studies-a-hard-look-at-gm-crops-1.12907) . Se o algodão GM é proibido em determinadas áreas da Índia, é muito mais uma questão política (e que envolve a percepção de risco) do que uma questão científica (e que envolve a avaliação de risco).
Quanto às superpragas, elas se devem ao mau manejo de pragas e não á tecnologia em si. Além disso, elas não são, na verdade, “super” em nada: a revista Nature, linkada acima, apenas adotou a linguagem usada na mídia popular.
Há um grande número de outros mitos e algumas suspeitas. A diferença entre estas duas categorias é que os mitos não têm qualquer base científica e as suspeitas derivam de trabalhos publicados, relatórios técnicos e outras formas de ordenar resultados de acordo com a praxe científica. Muitas questões pertinentes estão detalhadamente descritas na Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Genetically_modified_food_controversies) e recomendamos uma leitura atenta.

5. Endividamento do agricultor
Os empréstimos bancários, seguros de compra e coisas assim fazem parte da agricultura moderna, como também da indústria inovadora. Mas começou a muito tempo atrás!  Isso é tão antigo como a agricultura brasileira e pode ser facilmente aquilatado lendo o bom “Fogo Morto”, do José Lins do Rego, no tempo que a agroindústria do açúcar estava em plena expansão no Nordeste. É quase impossível entrar no setor da agricultura moderna sem empréstimos, sobretudo se a escala for grande, mas isso nada tem a ver com a transgenia: aplica-se igualmente ao milho, à soja, ao cacau, ao café e por aí vai. E lembro: os royalties raramente ultrapassam 5% do custo da produção: combustível, água, adubos, pesticidas vários e mão de obra importam em custos muito, mas muito maiores mesmo. No fundo, o uso de sementes de alta qualidade é como a compra de sêmen de bons touros para melhorar a genética do rebanho. Não é necessário manter o touro e o benefício da boa genética chega do mesmo jeito.

6. A concentração dos lucros na agricultura
A divisão dos lucros na agricultura é péssima, concordo com os leitores. Mas é ainda pior entre os pequenos agricultores que, muitas vezes sem saber se organizar em cooperativas, entregam por quaisquer 10 réis seus produtos ao dono do caminhão. Ao menos os grandes produtores são tremendamente bem articulados no comércio global.

7. Valor de um trabalho publicado: o que sai em boas revistas é necessariamente bom?
 Um trabalho publicado numa boa revista não significa imediatamente que ele é um bom trabalho: revisores erram e algumas vezes as revistas têm interesse em publicar um artigo polêmico, mesmo que de baixa qualidade ou mesmo um embuste. Todos os anos centenas de artigos são retirados de circulação pelas revistas por várias causas (plágio é uma delas), e isso sempre ocorre porque a comunidade científica denuncia a fraude ou o erro. Foi o que aconteceu com o artigo de Séralini dos ratos com tumor. Sabiamente, a PlosONE suspendeu a publicação de uma nova fantasia do Séralini no último dia 18 (maio/2015) e o homem perdeu seu tempo com o já tradicional circo de press release: só os jornais sensacionalistas da mídia irresponsável na França compraram o embuste. Agora (dia 2 de julho) o artigo finalmente apareceu, mas as críticas de todos os lados (inclusive as nossas - http://genpeace.blogspot.com.br/2015/07/dissecando-o-novo-artigo-do-grupo-de.html)  já não lhe asseguram um futuro promissor.
Afinal, o que é então um trabalho sério (ou mais especificamente, quando um resultado se converte em fato)? Aquele que vai sendo confirmado por outros autores e que está baseado no método científico. Fora disso tudo mais é ilusão.
Para resumir: um resultado só vira um fato quando é corroborado por muita gente. Antes disso é só uma suspeita (se a metodologia for boa) ou um boato (se for ruim). Sobre este tema complexo sugiro a leitura de http://genpeace.blogspot.com.br/2012/03/vozes-isoladas-na-ciencia-quebra-de.html .

8. Os transgenes contaminam o milho crioulo e comprometem a biodiversidade
A “contaminação” de variedades crioulas de milho é assunto muito discutido. É a única que pode ocorrer no Brasil hoje. Mas os produtores de milho crioulo sabem muitíssimo bem manter a identidade de suas variedades, quando querem. Muitos deles também fazem trocas nas feiras de sementes orgânicas e embaralham tudo de novo, com imenso risco para as variedades existentes em cada região. Isso tudo foi cuidadosamente avaliado num livro sobre coexistência do milho GM e não GM que publicamos pelo MCTI vários anos atrás.
A “contaminação” comercial em milho é uma fantasia, sobretudo no replantio de grãos: todo agricultor sabe o que o vizinho está plantando e se insiste em usar para o plantio grãos colhidos a menos de 25 m da cerca do vizinho para o próximo plantio, ou é louco ou mal intencionado. Por outro lado, se alguém planta milho orgânico, tem que seguir as regras dos orgânicos, que exigem uma separação muuuuuito maior entre cultivos orgânicos e convencionais (sejam transgênicos ou não) do que pede a regra de coexistência da CTNBio. Há outras fontes de “contaminação”, como maquinário, caminhão, etc., mas isso foge ao nosso foco.
O Brasil e vários outros países mantêm bancos de germoplasmas que são os responsáveis pelos programas de melhoramento genético das plantas de interesse comercial. No caso do milho o centro de origem é na América Central e o Brasil e demais países fora desta área são, quando muito, centros de diversidade secundária. Além disso, não vejo como as plantas transgênicas poderiam causar mais danos ao milho original do que as variedades comerciais não transgênicas. O transgene em si só será fixado na população nativa se contribuir de forma muito importante para a seleção de grãos no novo plantio. Isso é um assunto complexo e que extrapola um pouco  o espaço aqui. A riqueza de germoplasmas de outras plantas independe do milho, claro.
No contexto do milho, não pode haver erosão genética como entendemos para espécies que se propagam sem a mão do homem. Pode haver perda transiente de diversidade, mas para isso existem os bancos de germoplasma, que são ordens de grandeza mais ricos do que o depósito de sementes dos noruegueses e de outros defensores estelares da Natureza.

9. Superpragas aparecerão em resposta ao uso dos OGMs
 Desde que o Homem ingressou na agricultura que o MIPT (Manejo integrado de pragas e tecnologias) vem sendo exercido, com maior ou menor sucesso, dependendo da base técnica, da pressão econômica e do clima. As pragas sempre driblam, com o tempo, qualquer técnica de controle exceto a destruição completa por fogo ou por máquina.  A tecnologia Bt pode ser superada pelas pragas, mas seu tempo de duração vai depender, como para qualquer outra tecnologia, da adoção de boas práticas agrícolas (que reduz o problema dos heterozigotos e também da subdosagem). É tão simples como isso e não há solução mágica.


10. Percepção de risco X avaliação de risco

O público vê os transgênicos com desconfiança. É difícil aquilatar até que ponto esta desconfiança muda o padrão de consumo e é possível que o preço, o sabor, a forma e outros elementos determinem a decisão de compra, muito mais do que o símbolo T, existente em milhares de embalagens e desconhecido da maioria dos brasileiros. Mas o órgão técnico que avalia os transgênicos, a CTNBio, não vê riscos adicionais nos produtos hoje no mercado. Esta é a diferença entre percepção do risco (de todos nós) e avaliação do risco (dos especialistas). Sugiro a leitura de um texto antigo meu sobre isso: http://genpeace.blogspot.com.br/2014/04/principio-da-precaucao-herbicidas-e.html

Por fim, fico feliz em discutir estas questões de uma forma civilizada com os leitores. Concordo que nosso país poderia ter seguido outro caminho no seu desenvolvimento, mas fomos empurrados para este beco por séculos de incúria quando o assunto era educação, que continua muito ruim. Nosso povo carece de instrução para trabalhar em indústrias de ponta, para se organizar em cooperativas e, de forma geral, para exercer seus direitos. Enquanto isso, tem que gerar renda para fazer o país progredir e ser um pouco menos ingrato aos brasileiros que virão. A biotecnologia tem ajudado nosso país a ter uma balança comercial positiva. Pode ser que em 20 anos a agricultura seja muito diferente do que é hoje e que o país ingresse na área industrial, deixando à agricultura um papel secundário na geração de riquezas. Aí, então, poderemos fazer uma agricultura mais equilibrada e menos produtiva. Mas hoje não vejo como desprezar a agricultura intensiva e, dentro dela, a biotecnologia.

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