terça-feira, 13 de maio de 2014

Mosquitos transgênicos, muriçocas e saneamento: vários alvos e várias soluções

Em comentários a notícia veiculada no blog do Geraldo José, de Petrolina (http://www.geraldojose.com.br/index.php?sessao=noticia&cod_noticia=50807) o Roberto Malvezzi, conhecido como Gogó, trouxe à discussão uma série de informações que merecem discussão, sobretudo em consideração à longa história de luta do Gogó pelo rio São Francisco e pelas comunidades do vale. Além disso, ele mora em Juazeiro, o que lhe dá uma visão privilegiada da questão social do controle de vetores.

O texto comentado
Primeiramente, ele nos traz a informação de que os bairros de Mandacaru e Itaberaba são muito pobres, estando entre os mais pobres de Juazeiro. Foi justamente por isso que foram os bairros escolhidos para a liberação planejada, pois a existência de muitos criadores de Aedes aegypti está associada à falta de abastecimento de água regular e ao elevado número de recipientes que podem acumular água em terrenos baldios e quintais de bairros pobres, ao menos no Nordeste do Brasil. A escolha não foi determinada socialmente, mas biologicamente, tanto aqui como no Caribe ou em qualquer outra parte do Mundo. Mais adiante vou comentar o trabalho levado a cabo pela Fiocruz no controle da muriçoca em Recife, e comentado pelo Gogó, mas já adianto: foi executado num dos bairros mais pobres do Recife, e a escolha não foi feita para transformar a população pobre em cobaia, mas por razões biológicas.

Logo em seguida o Roberto comenta que a liberação planejada foi feita sem os cuidados da precaução, fazendo dos moradores cobaias dessa experiência. É fácil dizer isso, sem mostrar claramente o porque. A CTNBio analisou com muito cuidado todos os possíveis riscos e concluiu que os riscos desta liberação planejada eram efetivamente nulos. Uma vez aprovada a liberação, ela foi conduzido sob a tutela da USP. A população dos dois bairros na verdade se beneficiou da redução do A. aegypti, o vetor da dengue, nos anos em que durou a tal “experiência”: ninguém foi cobaia de coisa alguma. Seria bacana se o Roberto fizesse o que faz quando luta contra os desmandos do poder do Estado e das empresas no vale do São Francisco: mostrasse dados concretos.

Na frase seguinte à do comentário acima o Roberto afirma que a CTNBio já liberou a experiência para todo território nacional. Não é nada disso: a CTNBio liberou o produto para o comércio, já não há experiência alguma e os riscos foram provados como sendo negligenciáveis. De toda forma, haverá um monitoramento da liberação comercial, segundo consta do dossiê de liberação comercial e está em análise na CTNBio. O uso de palavras inadequadas como as empregadas pelo Roberto leva o leitor à conclusão de que, de fato, os brasileiros serão cobaias em larga escala, o que evidentemente seria uma enorme irresponsabilidade da CTNBio.

A presença maciça de mosquitos na cidade de Juazeiro também foi comentada e, de fato, é uma realidade. Mas o que incomoda os moradores em quase todas as cidades é muito mais a muriçoca comum, que não transmite a dengue nem cruza com o vetor desta virose. É contra ela que são usados os mosquiteiros comentados no seu texto: em cima das camas e, num caso extremo, por cima das mesas de bar, à noite. O mosquito da dengue voa de dia e contra ele os mosquiteiros não dão certo, só prá quem dorme fora do horário habitual. A confusão que o texto traz entre o mosquito da dengue e os demais é danosa à compreensão do contexto da luta contra o vetor.

Danosa também é a apresentação do problema de controle do mosquito como se o mosquito fosse uma única espécie. A solução para o controle dos mosquitos pode ser bastante diferente entre as várias espécies. As espécies do gênero Culex são endêmicas no Brasil e espalhados em todo o território, inclusive nas áreas silvestres. Já o Aedes aegypti é uma espécie exclusivamente urbana. Seus criadouros são também bastante diferentes, assim como seus hábitos na hora de buscar sangue para a refeição. Misturar todos os mosquitos num balaio só demonstra falta de trânsito na área de controle. O amadorismo não se encaixa na seriedade que se espera de um formador de opiniões importante como o Malvezzi.

Por fim, o Gogó se pergunta: Será mesmo que a proliferação dos outros mosquitos na cidade nada tem a ver com a soltura do Aedes transgênico ? E os demais possíveis desequilíbrios ambientais foram efetivamente avaliados? A primeira pergunta é inteiramente descabida, uma vez que a liberação de um mosquito que morre depois de duas semanas não pode, de forma alguma, contribuir para aumentar a população de outros mosquitos, nem sequer os da mesma espécie. Mais uma vez, entrando num assunto do qual não tem conhecimento necessário, o Roberto faz de seus comentários uma ferramenta para espalhar medo e desinformação e isso contradiz seu longo histórico de argumentos consistentes contra a transposição e outras barbaridades impetradas contra os ribeirinhos. Os demais desequilíbrios foram identificados e avaliados e os riscos considerados negligenciáveis. Nada foi esquecido, ao contrário do que deixa transparecer o texto.


Epílogo
Numa réplica ao meu comentário no blog, o Gogó nos traz um texto de um ex-membro da CTNBio, a Dra. Lia Giraldo, onde ela tece considerações sobre a dengue e seu controle. Vale a pena uma leitura atenta:

“ Prezados, o MS sempre propagou sucesso no controle da dengue quando insere medidas (como um novo programa) logo após um surto epidêmico. É importante que se saiba que logo após um surto epidêmico temos um período longo, chamado de silêncio imunológico, pois a alta exposição populacional ao vírus causa uma imunidade natural a esses expostos, aí começa um processo de surgimento de novos susceptíveis ao vírus, ou quando entra um outro vírus, ocorre uma novo surto. Essa questão do Aedes transgênico foi liberado tb no Paraguai, sempre em comunidades pobres. A preocupação é justa, pois é muito cedo para cantar vitórias. Especialmente se computarmos outros problemas dela introdução em um nicho ecológico de uma espécie exogena. Ao menos já existe um incômodo constatado. Os enxames de mosquito. A dengue não é uma doença grave, é uma virose que se houve assistência e acompanhamento médico ninguem morre. É de baixíssima letalidade. No Brasil é uma vergonha a mortalidade por dengue, por falta de assistência médica e equívocos na condução clínica dos casos. Na atenção primária à saúde os profissionais não estão preparados para atender e acompanhar os casos de dengue. Sabemos que a hidratação previne muitas complicações, pois é o choque hipovolêmico que é responsável pela morte. Em Cuba, ninguém morre de complicações hemorrágicas do dengue, mesmo considerando a alta incidência dessas complicações. Publiquei um livro em 2004, denominado Abordagem ecossistêmica em saúde: ensaios para o controle do dengue em Pernambuco. Em Recife, conseguimos fazer uma resistência a esses modelos químico-dependentes de controle vetorial. O debate está aberto. A CTNBio, todos sabem, está para legitimar os interesses da biotecnologia e não da biossegurança"

O texto quase nada tem a ver com o uso de mosquitos machos estéreis para o controle de populações de A. aegypti, que é do que se trata a questão. Aqui se fala de uma liberação ocorrida no Paraguai, em comunidade pobre, que nunca existiu. Fala-se que a dengue não é uma doença séria e que o Ministério da Saúde brinca com os dados para dar imagem boa ao Governo. E se conclui com a mesma frase que outra pessoa citou em comentário ao texto do Gogó: A CTNBio, todos sabem, está para legitimar os interesses da biotecnologia e não da biossegurança. A Lia Giraldo se afastou da CTNBio porque sempre achou que a Comissão agia sem atendimento às normas de biossegurança. Mas, quando esteve lá, seus argumentos eram sem base científica. E, depois disso, pelo que se depreende do texto acima, não melhoraram muito.

A abordagem ecossistêmica que a Lia comenta é um conjunto de ideias bem alinhavadas, baseadas muito mais em experiências prévias com Culex (a muriçoca comum) do que em trabalhos efetivos com Aedes, o vetor da dengue (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007000300033 ). De toda forma, é um trabalho teórico, nunca foi posto efetivamente em prática. Curiosamente, ele afirma (e com razão) que o controle do mosquito (e sua futura erradicação) é o que precisa ser buscado. Ora, se a virose não apresenta de fato gravidade e o problema maior é de assistência médica, o programa devia centrar na capacitação médica! Chega a preocupar ler as afirmações do texto da Lia, veiculadas aqui pelo Gogó: se os gestores de saúde pública acham que a dengue é uma virosezinha à toa, o que dizer dos políticos e do governo?

Para meu espanto, o Gogó comenta que encontrou a novíssima informação de que a soja transgênica pode cruzar com o Amaranthus e produzir uma nova planta híbrida resistente a tudo que é herbicida e, naturalmente, tão invasora quanto o Amaranthus. Rogo aos leitores que comentem esta informação e tragam dados concretos pois, se for verdade, estaremos vendo uma revolução dos conceitos da biologia.



Um dia depois que postei a primeira versão deste post, recebi  de um amigo o comentário enviado a ele por um pesquisador cubano, referente ao texto da Dra. Lia Giraldo, acima. O pesquisador é cubano e trabalha há muitos anos no Instituto de Engenharia Genética de Havana.

From: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Date: 2014-05-14 14:15 GMT-03:00
Subject: Fwd: GenPeace

Francisco leíste este mensaje de genpeace¿??
En el texto en azul dice que en Cuba nadie muere por la enfermedad. Eso no debe ser verdad. En Cuba también hay complicaciones y muertes. Lo que si es cierto, que no es precisamente el enfoque de ese texto en azul, que hay una gran preocupación por acabar con los niveles de infestación por Aedes. Siempre hay altísimo nivel de aplicación de químicos para mantener la población de mosquitos en un bajo nivel...

Assim vocês podem ver o quanto é fantasioso o texto da Lia Giraldo. É evidente que Cuba tem uma medicina muito melhor que a nossa, mas a dengue não é uma virose à toa e, lá como cá, eles empregam muito inseticida e larvicida para controlar o vetor. Também lá, como cá, se morre de dengue.

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