segunda-feira, 10 de junho de 2013

Transgênicos, banimento francês do milho GM e o pedagogo Paulo Freire: lições de avaliação de risco e compromisso do profissional com a sociedade

Marcel Kuntz, John Davison e Agnès Ricroch publicaram um ensaio longo sobre as implicações do banimento do milho MON810 pelo governo francês sobre o processo de avaliação de risco (http://www.nature.com/nbt/journal/v31/n6/full/nbt.2613.html?WT.ec_id=NBT-201306). É uma leitura fundamental para todos os membros da CTNBio e para todos aqueles interessados em avaliação de risco. Além do texto impresso, há ainda links para suplementos online, que também precisam ser lidos. O conjunto é impressionante. Aos que já militam na CTNBio há mais de dois anos será possível lembrar que fizemos uma réplica, ponto a ponto, da maior parte dos argumentos trazidos pelo Governo Frances e apresentados aqui por ocasião das nossas discussões sobre os riscos dos milhos Bt. Mantidas as proporções, a velha réplica rebate os mesmos pontos que esta, recém-publicada. Os autores, então, afirmam que “O documento de medidas emergenciais da França não apenas é vazio em novas evidências científicas, como também distorce e falseia citações e interpretações de artigos científicos autênticos, incluindo os do painel de OGM da EFSA. Outros artigos científicos (pelo menos 8 desde 2008) relevantes ao assunto e trazendo uma visão distinta foram ignorados”. Foi também esta a nossa afirmação ao fim da leitura da longa réplica ao texto contrário à liberação comercial do milho Bt.
Independentemente da leitura que se possa fazer do documento e seus suplementos, o parágrafo final merece consideração especial:
Pode-se perguntar porque, transcorrido mais de um ano desta distorção da capacidade de análise científica, como mostra o conteúdo do documento de medidas emergenciais, isto não provocou uma crítica ampla. Claro que é improvável que a crítica venha do novo governo francês, que segue a mesma política anti-OGM que lhe traz dividendos políticos. Nós propomos que o silêncio da mídia e das instituições científicas é atribuível, pelo menos em parte, à ideologia difusa, contemporânea, pós-moderna e relativista que defende ser a ciência uma “construção social”, um “enquadramento” particular da verdade e, ao fim, apenas uma opinião, não necessariamente melhor do que qualquer outra. Num tal contexto, aqueles que insistirem numa verdade científica fatalmente terão que encarar a acusação de “positivismo” ou “cientificismo” (ou reducionismo, como ouvimos frequentemente na CTNBio.Nota do autor). Esta é a grande contradição da política da União Europeia, que simultaneamente defende uma abordagem “baseada em ciência” e, ao mesmo tempo, abraça um enfoque pós-moderno que nega à ciência a capacidade de abordar verdades objetivas”.
Aqui surge um elemento fundamental: a imposição de uma nova concepção de ciência, aquela em que o fato científico (cuidado, fato é muito diferente de resultado ou observação) e a própria ciência e seu método, não podem ser olhados apenas do ponto de vista estrito dos cientistas, mas devem ser conceitos elaborados pelas diferentes visões sociais, num contexto holístico. Será mesmo assim?
O maior pedagogo que já tivemos, Paulo Freire, nordestino e professor da mesma universidade federal onde milito (a UFPE), escreveu em seu excelente livro, Educação e Mudança, falando do compromisso do profissional com a sociedade:
Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade – inserção nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é válido quando está fundado cientificamente”.  
Paulo Freire avança na argumentação dizendo que o profissional com compromisso deve ter uma visão que se vai ampliando e deve buscar uma transformação do todo, e não das partes. Isso é bem claro se considerarmos que todos os profissionais devem ter um compromisso com seu povo. Mas a possibilidade da transformação do todo passa por muitas instâncias e muitos atores e é esta articulação de atores que o profissional deve buscar e nela engajar-se. É, contudo, irreal acreditar que dentro de cada ambiente profissional se possa trabalhar pela mudança de um todo social e tentar fazê-lo contradiz o papel técnico do profissional. Aqui aparece uma pretensa oposição entre humanismo (na concepção freiriana, mais ampla) e tecnologia. É novamente o próprio Paulo Freire que nos diz:
O erro desta concepção (a de que o humanismo retarda as soluções técnicas) é tão nefasto como o erro da sua contrária – a falsa concepção do humanismo – que vê na tecnologia a razão dos males do homem moderno. E o erro básico de ambas, que não podem oferecer a seus adeptos nenhuma forma real de compromisso, está em que, perdendo elas a dimensão da totalidade, não percebem o óbvio: que humanismo e tecnologia não se excluem. Não percebem que o primeiro implica a segunda e vice versa”.
A leitura do parágrafo acima nos mostra claramente que humanismo e ciência caminham lado a lado, mas que um não determina o outro. Onde então o profissional que tem compromisso com seu povo dá vazão ao seu humanismo, se ele atua na CTNBio? A questão, aqui, não é impor ao fórum de discussão as questões levantadas pela visão humanista, uma vez que o fórum é científico. A visão humanista entra na concepção da própria forma de trabalhar, no compromisso do profissional com a verdade e com a missão que lhe foi atribuída. E, naturalmente, o compromisso se estende à atuação nas demais instâncias sociais: nas escolas, na política, na atividade nos vários fronts sociais.

Baseado em seu humanismo, o profissional em avaliação de riscos deve estar pronto a alertar o público sobre as conclusões dos trabalhos de seu grupo e pode até se antepor publicamente às conclusões; mas não deve fazê-lo com argumentos fora da ciência, falseados ou de alguma forma desvirtuados, como fez o grupo anônimo que redigiu o documento francês. É justamente seu compromisso como profissional com a sociedade que o leva à busca da verdade, combatendo com as armas válidas em cada fórum. É também seu dever servir como guia especialista ao povo, que não detém o conhecimento indispensável à conclusão acertada. Mentir para o público é faltar com seu compromisso, violando ao mesmo tampo o humanismo e a ciência embutidos na sua atuação profissional.  Assim, o que nos diz Paulo Freire será concretizado: que humanismo e tecnologia não se excluem. 
Paulo Andrade, Depto. Genética, UFPE
10/06/2013

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